Para os que estão tendo um primeiro contato com a psicologia analítica, um bom livro de referencia é Jung: Vida e obra, de Nise da Silveira. Mesmo sendo um livro não volumoso, consegue abarcar de forma clara e sucinta as ideias fundamentais dos temas junguianos, de forma a capacitar o leitor a encarar as obras completas ou outras obras de referencia mais densas de forma confiante.
Um dos principais pontos fortes dessa obra é a indicação de leituras ao final de cada capitulo, onde a autora de forma muito cuidadosa pontua as partes do livro indicado a serem lidas e destaca o grau de aprofundamento destas indicações, de forma que tanto os neófitos quanto os especialistas se sentirão beneficiados pela leitura.
O livro é dividido em 15 capítulos, iniciando com a vida e obra de C.G. Jung, e em seguida explicando os principais conceitos da psicologia analítica. Nesse artigo, compartilharei de forma sucinta as ideias fundamentais conforme a exposição de Nise da Silveira em seu livro pioneiro, vamos a eles.
Complexos.
"Os complexos são agrupamentos de conteúdos psíquicos carregados de afetividade. Compõem-se primariamente de um núcleo possuidor de intensa carga afetiva. Secundariamente estabelecem-se associações com outros elementos afins, cuja coesão em torno do núcleo é mantida pelo afeto comum a seus elementos. Formam-se assim verdadeiras unidades vivas, capazes de existência autônoma. Segundo a força de sua carga energética, o complexo torna-se um imã para todo fenômeno psíquico que ocorra ao alcance de seu campo de atração.
A autonomia do complexo dependerá das emoções maiores ou menores que mantenha com a totalidade da organização psíquica. Por isso verifica-se em seu comportamento graus muito variados de independência. "Alguns repousam tranquilamente mergulhados na profundeza do inconsciente e mal se fazem notar, outros agem como verdadeiros perturbadores da economia psíquica; outros já romperam caminho até o consciente, mas resistem a deixarem-se assimilar e permanecem mais ou menos independentes, funcionando segundo suas leis próprias" (J.Jacobi)
Dos complexos dependem o mal-estar ou o bem-estar da vida do individuo. Eles podem ser comparados, diz Jung, a infecções ou a tumores malignos, que se desenvolvem sem qualquer intervenção da consciência. Como demônios soltos, infernizam a vida no lar e no trabalho. Todavia, é preciso acentuar que na psicologia junguiana os complexos não são, por essência, elementos patológicos. "Significam que existe algo conflitivo e inassimilado - talvez um obstáculo, mas também um estimulo para maiores esforços, e assim podem vir a ser uma abertura para novas possibilidades de realização." Portando, ao lado de seu papel negativo tão proclamado, os complexos poderão desempenhar uma função positiva. Tornam-se patológicos quando sugam para si quantidade excessivas de energia psíquica."
Após essa descrição, a autora prossegue com a descrição da assimilação dos complexos e da evolução do conceito de complexo por C.G.Jung.
Energia psíquica.
"(...) Enquanto Freud atribui à libido significação exclusivamente sexual, Jung denomina libido a energia psíquica tomada num sentido amplo. Energia psíquica e libido são sinônimos. Libido é apetite, é instinto permanente de vida que se manifesta pela fome, sede, sexualidade, agressividade, necessidades e interesses os mais diversos. Tudo isso está compreendido no conceito de libido. A ideia junguiana de libido aproxima-se bastante da concepção de vontade ,segundo Schopenhauer. (...)"
"A energia psíquica (libido) "é a intensidade do processo psíquico, seu valor psicológico". Não se trata de valor em acepção moral, estética ou intelectual. Valor tem aqui o significado de intensidade, "que se manifesta por efeitos definidos ou rendimentos psíquicos" Energia psíquica é um conceito abstrato de relações de movimento, algo inapreensível, um X, comparável (mas não idêntica) a energia física. (...)"
"Todos os fenômenos psíquicos são de natureza energética. Os complexos são nós de energia. Veremos em breve que os arquétipos são núcleos de energia em estado virtual e que os símbolos são máquinas transformadoras de energia. (...)"
"A libido mostra-se recalcitrante às ordens da vontade consciente. Os esforços mais obstinados não serão suficientes se não existir, na mesma direção, um declive natural favorável à canalização da energia. "A vida somente flui para diante ao longo de declive adequado"
"É por meio de transmutação da energia psíquica, da formação de símbolos novos sucedendo a símbolos caducos, esvaziados da energia que antes os animava, que se processa, na sua essência, o desenvolvimento da psique do ser humano."
Ego.
"Jung define o ego como um complexo de elementos numerosos, formando, porém, unidade bastante coesa para transmitir impressão de continuidade e de identidade consigo mesma. Dada sua composição feita de múltiplos elementos, Jung usa frequentemente a expressão complexo do ego, em vez de ego simplesmente. "A luz da consciência tem muitos graus de brilho e o complexo do ego muitas gradações de força" "
Inconsciente
"O inconsciente, na psicologia Junguiana, compreende inconsciente pessoal e inconsciente coletivo. "
Inconsciente pessoal.
"Esse denominação refere-se às camadas mais superficiais do inconsciente, cujas fronteiras com o consciente são bastante imprecisas. Aí incluídas as percepções e impressões subliminares dotadas de carga energética insuficiente para atingir o consciente; combinações de ideias ainda demasiado fracas e indiferenciadas; traços de acontecimentos ocorridos durante o curso da vida e perdidos pela memória consciente; recordações penosas de serem relembradas; e sobre tudo, grupos de representações carregados de forte potencial afetivo, incompatíveis com a atitude consciente (complexos) Acrescente-se a soma das qualidades que nos são inerentes, porém que nos desagradam e que ocultamos de nós próprios, nosso lado negativo, escuro.
Esses diversos elementos, embora não estejam em conexão com o ego, nem por isso deixam de ter atuação e de influenciar os processos conscientes, podendo provocar distúrbios tanto de natureza psíquica quanto de natureza somática."
Inconsciente coletivo.
"Corresponde às camadas mais profundas do inconsciente, aos fundamentos estruturais da psique comuns a todas as pessoas."
"Do mesmo modo que o corpo humano apresenta uma anatomia comum, sempre a mesma, apesar de todas as diferenças raciais, assim também a psique possui um substrato comum. Chamei esse substrato de inconsciente coletivo. Na qualidade de herança comum transcende todas as diferenças de cultura e de atitudes conscientes, e não consiste meramente em conteúdos capazes de se tornarem conscientes, mas em disposições latentes para reações idênticas. Assim o inconsciente coletivo é simplesmente a expressão psíquica da identidade da estrutura cerebral, independente de todas as diferenças raciais. Deste modo, pode ser explicada a analogia, que vai mesmo até a identidade, entre vários temas místicos e simbólicos, e a possibilidade de compreensão entre os seres humanos em geral. As múltiplas linhas de desenvolvimento psíquico partem de um tronco comum cujas raízes se perdem muito longe num passado remoto" (...) C.G. Jung
"O inconsciente coletivo funciona, na interpretação psicológica, como o denominador comum que reúne e explica numerosos fatos impossíveis de entender, no momento atual da ciência.
Enquanto o inconsciente pessoal é composto de conteúdos cuja existência decorre da experiência individuais, os conteúdos que constituem o inconsciente coletivo são impessoais, comuns a todas as pessoas e transmitem-se por hereditariedade."
Arquétipos.
"(...) Arquétipos são possibilidades herdadas para representar imagens similares, são formas instintivas de imaginar. São matrizes arcaicas onde configurações análogas ou semelhantes tomam forma. (...)"
"Como se origina os arquétipos?
Resultariam do depósito das impressões superpostas deixadas por certas vivências fundamentais, comum a todos os seres humanos, repetidas incontavelmente através de milênios. Vivencias típicas, tais como as emoções e fantasias suscitadas pelos fenômenos da natureza, pelas experiências com a mãe, pelos encontros do homem com a mulher e da mulher com o homem, vivencias de situações difíceis como a travessia de mares e de grandes rios, a transposição de montanhas, etc.
Seriam disposições inerentes à estrutura do sistema nervoso que conduziriam à produção de representações sempre análogas ou similares. Do mesmo modo que existem pulsões herdadas para agir de modo sempre idêntico (instintos), existiriam tendências herdadas para construir representações análogas ou semelhantes. (...)"
"Seja qual for a sua origem, o arquétipo funciona como um nódulo de concentração de energia psíquica. Quando essa energia, em estado potencial, se atualiza, toma forma, então teremos a imagem arquetípica. Não podemos denominar essa imagem de arquétipo, pois o arquétipo é unicamente uma virtualidade. (...)"
"A noção de arquétipo, postulando a existência de uma base psíquica comum a todos os seres humanos, permite compreender por que em lugares e épocas distantes aparecem temas idênticos nos contos de fadas, nos mitos, nos dogmas e ritos das religiões, nas artes, na filosofia, nas produções do inconsciente de um modo geral - seja em sonhos de pessoas normais, seja no delírios de loucos."
Símbolo.
"Nem toda imagem arquetípica é um símbolo por si só. Em todo símbolo está presente a imagem arquetípica como fator essencial, mas para construí-lo essa imagem devem ainda juntar-se outros elementos. O símbolo é uma forma extremamente complexa. Nela se reúnem opostos numa síntese que vai além das capacidades disponíveis no presente e que ainda não pode ser formulada de conceitos. Inconsciente e consciente aproximam-se. Assim, o símbolo não é racional, porém as duas coisas ao mesmo tempo. Se é de uma parte acessível à razão, de outra parte lhe escapa para vir fazer vibrar cordas ocultas do inconsciente: "Um símbolo não trás explicações; impulsiona para além de si mesmo na direção de um sentido ainda distante, inapreensível, obscuramente pressentido e que nenhuma palavra de língua falada poderia exprimir de maneira satisfatória" (Jung) (...)"
"Os símbolos tem vida. Atuam. Alcançam dimensões que o conhecimento racional não pode atingir. Transmitem intuições altamente estimulantes, prenunciadoras de fenômenos ainda desconhecidos. Mas desde que seu conteúdo misterioso venha a ser apreendido pelo pensamento lógico, esvaziam-se e morrem."
Sonho.
"O sonho é uma autor representação espontânea, sob forma simbólica, da situação do inconsciente"
"O sonho é aquilo que ele é, inteira e unicamente aquilo que ele é, não é uma fachada, não é algo pré-arranjado, um disfarce qualquer, mas uma construção completamente realizada"
"O sonho é coisa viva. Não é de modo algum coisa morta que soe como papel seco machucado. É uma situação existente, é como um animal com antenas ou com numerosos cordões umbilicais"
"Eis algumas definições que Jung dá aos sonhos.
Sendo o inconsciente manifestação autêntica da natureza, o sonho, formação nativa do inconsciente, tem todas as características de um produto genuinamente natural. Exprime as coisas tais como são, na linguagem arcaica das imagens e dos símbolos. Não disfarça coisa alguma. "A natureza nunca é diplomática." (...)"
"Para Freud "o sonho é a realização disfarçada de um desejo reprimido" Jung não aceita o disfarce nem admite que todos os sonhos traduzam sempre desejos. Haverá decerto sonhos que revelam desejos secretos, mas a escala de coisas que os sonhos poderão exprimir é infinitamente mais ampla que a mera realização de aspirações não aceitas pelos códigos morais. "Os sonhos podem ser feitos de verdades inelutáveis, de sentenças filosóficas, de ilusões, de fantasias desordenadas, de recordações, projetos, antecipações, seja mesmo de visões telepáticas, de experiências intimas irracionais, e de não sei mais o que ainda."
"A abordagem junguiana aborda o sonho de dois pontos de vista: do ponto de vista de sua causalidade e da sua finalidade. A abordagem causal parte dos elementos do sonho e, através da cadeia de associações que estes despertam, vai de elo em elo, até chegar a um complexo reprimido no inconsciente. É uma técnica redutiva que visa a atingir o ponto X, raiz única de onde brotariam todos os elementos do sonho. Sem negar a importância de seguir o fio do determinismo causal do sonho, Jung diz que apara descobri os complexos mais carregados de energia atuantes no inconsciente não é necessário ter como ponto de partida os elementos do sonho. Uma figura qualquer de anúncio de jornal ou mesmo uma forma abstrata conduzirão inevitavelmente o sonhador a seus complexos. O sonho, prodigiosa trama onde se entrelaçam tão numerosos conteúdos psíquicos, poderá dar muito mais que isso. Jung não pergunta apenas: por que este sonho? Pergunta principalmente: Para que este sonho, qual a sua finalidade? Se uma técnica redutiva satisfazer à primeira pergunta, a segunda exigirá outro método. Será necessário explorar os conteúdos oníricos em todas as direções possíveis, amplificando-os e enriquecendo-os; será necessário procurar descobrir conexões que existiam entre uns e outros, até que se configure o sentido do sonho, isto é, a expressão das forças do inconsciente no exercício de suas funções reguladoras (método das ampliações). (...)"
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Individuação.
"Todo ser tende a realizar o que existe nele, em germe, a crescer, a completar-se. Assim, é para a semente do vegetal e para o embrião do animal. Assim é para a pessoa, quanto ao corpo e quanto a psique. Mas no ser humano, embora o desenvolvimento de suas potencialidades seja impulsionado por forças instintivas inconscientes, isso adquire um caráter peculiar: o ser humano é capaz de tornar consciência desse desenvolvimento e influencia-lo.
Precisamente no confronto do inconsciente com o consciente, no conflito como na colaboração entre ambos é que os diversos componentes da personalidade amadurecem e unem-se numa síntese, na realização de um individuo especifico e inteiro. Essa confrontação "é o velho jogo do martelo e da bigorna: entre os dois, o ser humano, como o ferro, é forjado num todos indescritível, num individuo. isso em termos toscos, é o que eu entendo por processo de individuação". (Jung)"
"O processo de individuação não consiste num desenvolvimento linear. É um movimento de circunvolução que conduz ao um novo centro psíquico. Jung denominou esse centro self (si mesmo). Quando consciente e inconsciente vêm ordenar-se em torno do self, a personalidade completa-se. O self será o centro da personalidade total, como o ego é o centro do campo consciente. (...)"
Persona.
"Para estabelecer contatos com o mundo exterior, para adaptar-se às exigências do meio onde vive, o ser humano assuma uma aparência que geralmente não corresponde ao seu modo de ser autentico. Apresenta-se mais como os outros esperam que ele seja, ou como ele desejaria ser, do que realmente é. A esse aparência artificial Jung chama persona, designação muito adequada, pois os antigos empregavam esse nome para denominar a máscara que o ator usava segundo o papel que ia representar. O professor, o médico, o militar, por exemplo, de ordinário mantém uma fachada de acordo com as convenções coletivas, quer no vestir, no falar ou nos gestos. Os moldes da persona são recortes tirados da psique coletiva.
Se, numa certa medida, a persona representa um sistema útil de defesa, poderá suceder que seja tão excessivamente valorizada a ponto de o ego consciente identifica-se com ela. O individuo funde-se então com os seus cargos e títulos, ficando reduzido a uma impermeável casca de revestimento. Por dentro não passa de lamentável farrapo, que facilmente será estraçalhado se soprarem lufadas fortes vindas do inconsciente. (...)"
"Quanto mais a persona aderir à pele do ator, tanto mais dolorosa será a operação psicológica para despi-la.
Quanto é retirada a máscara que o ator usa nas suas relações com o mundo, aparece uma face desconhecida."
Sombra.
"(...) a sombra (em sentido psicológico) faz parte da personalidade total. As coisas que não aceitamos em nós, que nos repugnam e que por isso reprimimos, nós as projetamos no outro, sele ele um vizinho, o nosso inimigo político ou uma figura-símbolo como o demônio. E assim permanecemos inconscientes de que as abrigamos dentro de nós. Lançar luz sobre os recantos tem como resultado o alargamento da consciência. Já não é o outro quem está sempre errado. Descobrimos que frequentemente "a trave" está em nosso próprio olho.
Quanto mais a sombra for reprimida, mais se tornará espessa e negra. (...)"
"A sombra é uma espessa massa de componentes diversos, aglomerados desde pequenas fraquezas, aspectos imaturos ou inferiores, complexos reprimidos, até forças verdadeiramente maléficas, negrumes assustadores. Mas também na sombra poderão ser discernidos traços positivos: qualidades valiosas que não se desenvolveram devido a condições externas desfavoráveis ou porque o individuo não dispôs de energia suficiente para leva-las adiante, quando isso exigisse ultrapassar convenções vulgares."
Outros capítulos do livro abordam os tipos psicológicos (que por ser muito extenso abordarei num post à parte futuramente), contos de fada, mitos, alquimia, religião como função psicológica, obras de arte e educação de jovens e adultos.
Por fim, fica aqui como indicação para um primeiro contato com os conceitos da psicologia analítica, e também para os especialistas conhecerem essa síntese pioneira realizada pela psiquiatra Nise da Silveira. Trata-se de um livro muito rico em informações, e ainda assim muito rápido de ler para recordar conceitos fundamentais. Se quiser conhecer mais,
é só vim aqui.
Referencia:
da Silveira, Nise, Jung: vida e obra, 1ª edição, Rio de Janeiro, Paz e terra, 2023.
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