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Destaques

Os oito segredos que os homens carregam - Por James Hollis

Os oito segredos que os homens carregam Portrait of Paul Grotz Walker Evans (United States, 1903-1975) No livro “Sob a sombra de Saturno, a ferida e a cura dos homens” , o analista americano James Hollis se debruça sobre a influência do patriarcado e sua extensão sobre as definições do que significa ser homem e seus respectivos papéis na contemporaneidade. Guiando-nos através de uma perspectiva sensível e usando a mitologia romana como ponto de partida, Hollis explica os oito segredos que os homens carregam e expõe os mecanismos de formação do “complexo materno”. Além de destacar a importância do papel a ser exercido pelo pai e a falência da nossa cultura em estabelecer rituais saudáveis para a iniciação dos meninos. Abaixo um pequeno resumo, nas palavras do próprio Hollis, dos oito segredos que os homens carregam. 1 – A vida dos homens é tão governada pelas expectativas restritivas com relação ao papel que devem desempenhar quanto à vida das mulheres. Herdamos um mundo no qual o princ...

SEPTEM SERMONES AD MORTUOS (Sete Sermões aos Mortos)

 

Sete Sermões aos Mortos

SEPTEM SERMONES AD MORTUOS

(1916)


Jung autorizou a publicação de Septem sermones ad mortuos (Sete sermões

aos mortos) em caráter particular, sob a forma de folheto, para distribuir a

pessoas amigas. Nunca foi posto à venda nas livrarias. Mais tarde

qualificou-o de pecado de juventude, arrependendo-se de tê-lo divulgado.


A linguagem lembra o estilo do Livro vermelho, mas, ao contrário dos

intermináveis diálogos com os alter-egos do Livro vermelho, os Sete

sermões formam um todo autônomo. Transmitem a impressão, se bem que

fragmentária, do que Jung passou entre os anos de 1913 a 1917, e do que

viria a criar.


Neles se encontram sugestões ou antecipações de ideias que seriam

desenvolvidas subsequentemente em teses científicas, sobretudo as

referentes à natureza polarística da psique, da vida em geral e de todos os

postulados psicológicos. Jung sentiu-se atraído pelo raciocínio por

paradoxos que é típico do gnosticismo. Por isso se identifica aqui com o

escritor Basílides (gnóstico do início do segundo século da era cristã) e até

recorre à terminologia usada por ele — chamando Deus, por exemplo, de

Abraxas. Tudo obedece a um plano de deliberada mistificação.


Jung consentiu na inclusão dos Sete sermões em suas Memórias após

certa hesitação e apenas “pelo amor à honestidade”. Jamais revelou a chave

do anagrama no fim do último sermão.


Os Sete sermões aos mortos, escritos por Basílides em Alexandria, a

cidade onde o Oriente encontra o Ocidente


I SERMÃO

Os mortos voltaram de Jerusalém, onde não encontraram o que

procuravam. Pediram-me guarida e imploraram que lhes falasse. Assim

comecei a ensinar.


Prestai atenção: começo pelo nada. O nada equivale à plenitude. No

infinito, o pleno não é melhor que o vácuo. O nada é, ao mesmo tempo,

vácuo e plenitude. Dele se pode dizer tudo o que se quiser; por exemplo: que

é branco, ou preto, ou então que existe, ou não. Uma coisa infinita e eterna

não possui qualidades, pois tem todas as qualidades.


A esse nada ou plenitude dá-se o nome de PLEROMA. Nesse particular

cessam o pensar e o ser, já que o eterno e infinito não possui qualidades.

Nele nenhum ser é, porque senão se diferenciaria do pleroma e possuiria

qualidades que o distinguiriam como algo inconfundível.

No pleroma não existe nada e tudo existe. É absolutamente inútil pensar

no pleroma, pois redundaria em autodissolução.


A CRIATURA não está no pleroma, mas em si mesma. O pleroma é,

simultaneamente, o começo e o fim dos seres criados. Impregna-os, como a

luz impregna o ar em todo lugar. Apesar de impregnado por completo,

nenhum ser criado retém parte do pleroma, assim como o corpo inteiramente

translúcido não se torna claro nem escuro com a luz que o impregna. Somos,

porém, o próprio pleroma, pois integramos o eterno e infinito. Mas não

retemos nenhuma parte sua, por estarmos infinitamente afastados, não em

forma espiritual ou temporal, e sim essencial, pois nos diferenciamos dele

por nossa essência de criatura, confinada no tempo e no espaço.


No entanto, por dele fazermos parte, o pleroma também está em nós. Até

mesmo no seu grau mais ínfimo não tem fim, é eterno, e inteiro, pois pequeno

e grande são qualidades nele contidas. É aquele nada que se acha completo e

contínuo em todo lugar. Só no sentido figurado, portanto, me refiro ao ser

criado como parte do pleroma. Porque, na realidade, o pleroma não se

divide em nenhum lugar, uma vez que equivale ao nada. Também somos o

pleroma inteiro, porque, no sentido figurado, o pleroma é o menor ponto

(apenas suposto, não existente) em nós e no firmamento ilimitado que nos

rodeia. Mas por que, então, falamos afinal no pleroma, já que é assim, tudo e

nada?


Falo nele para partir de algum começo e também para tirar-vos a ilusão

de que em algum lugar, seja fora ou dentro, existe algo determinado, ou de

qualquer forma estabelecido, desde o início. Toda coisa que se diz

determinada e certa é apenas relativa. Só é determinado e certo o que for

possível de ser modificado.


O que é modificável, porém, é a criatura. Por conseguinte, é a única coisa

que está determinada e certa; porque tem qualidades: inclusive é a própria

qualidade.


Impõe-se a pergunta: como se originou a criatura? Os seres criados

perecem, a criatura não; pois o ser criado é a própria qualidade do pleroma,

tanto quanto a não criação, que equivale à morte eterna. Em todos os tempos

e lugares existe a criação, em todos os tempos e lugares existe a morte. O

pleroma tudo possui, individualidade e não individualidade.


A individualidade equivale à criatura. É única. Constitui a essência da

criatura e, portanto, a diferencia. Por conseguinte, o homem discrimina

porque a individualidade faz parte de sua natureza. Daí também por que se

distinguem no pleroma qualidades que não existem. Distinguem-nas por

causa de sua própria natureza. Há pois que falar de qualidades do pleroma

que não existem.


Qual a utilidade, direis, de falar nisso? Não foste tu mesmo que disseste

que não adianta pensar no pleroma?

Isso eu vos disse, para tirar-vos a ilusão de que podemos pensar nele.

Quando distinguimos qualidades no pleroma, falamos tomando por base a

nossa própria individualidade e a respeito dessa mesma individualidade.

Mas nada dissemos a respeito do pleroma. A respeito de nossa própria

individualidade, porém, é preciso falar, para podermos distinguir

suficientemente a nós mesmos. A nossa própria natureza é individualidade.

Se não formos fiéis a essa natureza, não nos distinguiremos suficientemente

bem. Temos, portanto, que fazer distinções de qualidades.


Qual o prejuízo, perguntareis, em não se distinguir a si mesmo? Se não

nos distinguirmos, ultrapassando a nossa própria natureza, nos afastamos da

criatura. Caímos na falta de individualidade, que é a outra qualidade do

pleroma. Caímos no próprio pleroma e deixamos de ser criaturas. Nos

entregamos à dissolução no nada. O que resulta na morte da criatura.

Morremos, portanto, na medida em que não nos distinguimos. Daí o empenho

natural da criatura para adquirir individualidade, para lutar contra a

igualdade inicial, perigosa. A isso dá-se o nome de PRINCIPIUM

INDIVIDUATIONIS. Esse princípio é a essência da criatura. Com isso

podeis ver por que a falta de individualidade e a não distinção constituem

grande risco para a criatura.


Devemos, pois, distinguir as qualidades do pleroma. Essas qualidades

são ANTÔNIMAS, como, por exemplo:


O Efetivo e o Inefetivo.

Plenitude e Vácuo.

Vivos e Mortos.

Diferença e Igualdade.

Luz e Trevas.

O Quente e o Frio.

Força e Matéria.

Tempo e Espaço.

O Bem e o Mal.

Beleza e Fealdade.

O Uno e o Múltiplo etc.


As antônimas são qualidades do pleroma que não existem, pois uma

contrabalança a outra. Como constituímos o próprio pleroma, também

possuímos todas essas qualidades em nós. Por ser a própria base de nossa

natureza a individualidade, possuímos, portanto, essas qualidades em nome e

sinal da individualidade, o que significa que:


1. Essas qualidades são distintas e separadas umas das outras em nós; por

conseguinte, não são contrabalançadas e nulas, e sim efetivas. Somos assim

vítimas dessa antinomia. O pleroma está dividido em nós.


2. As qualidades pertencem ao pleroma e só em nome e sinal da

individualidade podemos e devemos possuí-las ou vivê-las. Temos que nos

distinguir das qualidades. No pleroma estão contrabalançadas e nulas; em

nós não. Sermos distintos delas liberta-nos.


Quando nos empenhamos no bem ou no belo, esquecemos

consequentemente a nossa própria natureza, que é a individualidade, e nos

entregamos às qualidades do pleroma, que são antônimas. Lutamos para

conseguir o bem e o belo, mas ao mesmo tempo também ficamos com o mal e

o feio, que no pleroma são inseparáveis do bem e do mal. Quando, porém,

permanecemos fiéis à nossa própria natureza, que é a individualidade, nos

distinguimos do bem e do belo e, portanto, ao mesmo tempo, do mal e do

feio. E assim não mergulhamos no pleroma, ou seja, no nada e na dissolução.


Tu dizes, contraporeis, que a diferença e a igualdade também são

qualidades do pleroma. Como seria, então, se nos empenhássemos na

diferença? Agindo assim, não estamos sendo fiéis à nossa natureza? E,

apesar disso, não devemos nos entregar à igualdade quando nos empenhamos

na diferença?


Não deveis esquecer que o pleroma carece de qualidades. Somos nós que

as criamos pelo raciocínio. Se, porém, vos empenhardes na diferença ou na

igualdade, ou em qualquer outra espécie de qualidade, estareis imersos em

raciocínios inspirados pelo pleroma; ou seja: raciocínios a respeito de

qualidades inexistentes do pleroma. Na proporção em que vos lançardes a

esses raciocínios, tornareis a cair no pleroma, atingindo ao mesmo tempo a

diferença e a igualdade. Não é o vosso raciocínio e sim o vosso ser que

constitui a individualidade. Por conseguinte, ao contrário do que supondes,

não é na diferença que deveis vos empenhar, mas no VOSSO PRÓPRIO

SER. No fundo, pois, existe apenas um empenho, ou seja, o empenho no

vosso próprio ser. Se tiverdes esse empenho, não precisareis saber nada a

respeito do pleroma e suas qualidades e ainda assim atingireis a meta

almejada em virtude de vosso próprio ser. Como, porém, o raciocínio se

aparta do ser, devo ensinar-vos esse conhecimento, por meio do qual

podereis refrear vossos pensamentos.


II SERMÃO

No meio da noite os mortos, parados em pé contra a parede, bradaram:

Queremos ver Deus. Onde está? Morreu?


Deus não morreu. Agora, como sempre, vive. Deus é criatura, coisa

definida e, portanto, distinta do pleroma. Deus é qualidade do pleroma e

tudo o que eu disse da criatura também se aplica a ele.


Distingue-se, porém, dos seres criados no sentido de que é mais

indefinido e indeterminável do que eles. É menos diferenciável que os seres

criados, pois a base de sua existência é a plenitude efetiva. Só na medida em

que for definido e distinto é criatura e na mesma proporção é manifestação

da plenitude efetiva do pleroma.


Tudo o que não distinguimos mergulha no pleroma e se anula pela

antinomia. Se, portanto, não distinguimos Deus, a plenitude efetiva se

extingue para nós.


Além disso, Deus é o próprio pleroma, da mesma maneira que cada ponto

ínfimo no criado e no incriado é o próprio pleroma.


O vácuo efetivo é a natureza do Diabo. Deus e o Diabo são as primeiras

manifestações do nada, que chamamos de pleroma. É indiferente que o

pleroma exista ou não, uma vez que em tudo é contrabalançado e nulo. A

criatura já não é assim. Na medida em que Deus e o Diabo são criaturas, não

se anulam e sim erguem-se um contra o outro, como antônimos efetivos. Não

precisamos de provas de sua existência. Basta que sempre se esteja falando

neles. Ainda que ambos não existissem, a criatura, por causa de sua

individualidade essencial, sempre os distinguiria de novo no pleroma.

Tudo o que a discriminação distingue no pleroma é antinomia. Deus,

portanto, sempre corresponde ao Diabo.


Essa inseparabilidade é tão íntima e, como a vossa própria vida vos fez

ver, tão indissolúvel quanto o próprio pleroma. Assim é que os dois se

mantêm muito próximos do pleroma, no qual todos os antônimos se anulam e

se fundem.


Deus e o Diabo se distinguem pelas qualidades de plenitude e vácuo,

criação e destruição. A EFETIVIDADE é comum a ambos. A efetividade os

une. Paira, portanto, sobre ambos, é um deus acima de Deus, já que em seu

efeito reúne a plenitude e o vácuo.

Esse é um deus que não conheceis, pois a humanidade o esqueceu. Nós o

chamamos pelo seu nome, ABRAXAS. É ainda mais indefinível que Deus e

o Diabo.


O deus que se pode distinguir, nós o chamamos de deus HELIOS, ou Sol.

Abraxas é efeito. Nada se antepõe a ele que não seja inefetivo, daí que a sua

natureza efetiva se desdobre livremente. O inefetivo não existe, portanto não

resiste. Abraxas paira acima do Sol e acima do Diabo. É a probabilidade

improvável, a realidade irreal. Tivesse o pleroma um ser, Abraxas seria a

sua manifestação. É o próprio efetivo, não algum efeito especial, mas o

efeito em geral.


É a realidade irreal porque não tem efeito definido.

É também criatura, por ser diferente do pleroma.

O Sol tem um efeito definido e o mesmo acontece com o Diabo. Por isso

nos parecem mais efetivos que o indefinido Abraxas.

É força, duração, mudança.


Os mortos então provocaram grande tumulto, pois eram cristãos.


III SERMÃO

Como a neblina que se ergue de um pântano, os mortos avançaram

clamando: Explica melhor esse deus supremo.


É difícil definir a divindade de Abraxas. Seu poder é o maior porque o

homem não o percebe. Do Sol, retira o summum bonum; do Diabo, o

infimum malum; mas, de Abraxas, a VIDA, totalmente indefinida, a mãe do

Bem e do Mal.


A vida parece ser menor e mais frágil que o summum bonum; por isso é

também difícil conceber que Abraxas transcenda em poder até o Sol, que é a

fonte radiosa de toda a força da vida.

Abraxas é o Sol e ao mesmo tempo a garganta eternamente voraz do

vácuo, o Diabo menosprezador e mutilante.


O poder de Abraxas é duplo; mas não o vedes, porque para vossos olhos

os antônimos incompatíveis se anulam.

O que o Deus-Sol fala é vida.

O que o Diabo fala é morte.

Mas Abraxas fala aquela palavra sagrada e maldita que é vida e morte ao

mesmo tempo.

Abraxas gera a verdade e a mentira, o Bem e o Mal, a luz e as trevas, na

mesma palavra e no mesmo ato. Por isso é Abraxas terrível.

É magnífico como o leão no momento em que ataca a vítima. Bonito como

um dia de primavera. É o próprio grande Pã e também o pequeno. É Príapo.

É o monstro das profundezas, pólipo de mil tentáculos, nó emaranhado de

serpentes aladas, frenesi.

É o hermafrodita dos tempos imemoriais.

É o senhor dos sapos e rãs, que vivem na água e sobem à terra, cujo coro

se eleva à tarde e à meia-noite.

É a abundância que busca a união com o vácuo.

É a sagrada procriação.

É o amor e o assassino do amor.

É o santo e seu traidor.

É a mais brilhante luz do dia e a mais negra noite de loucura.

Contemplá-los é cegueira.

Conhecê-lo, doença.

Venerá-lo, morte.

Temê-lo, sabedoria.

Não resistir a ele, redenção.

Deus mora atrás do Sol, o Diabo atrás da noite. O que Deus traz à luz, o

Diabo lança às trevas. Mas Abraxas é o mundo, seu porvir e seu passar.

Sobre cada presente que vem do Deus-Sol, o Diabo roga sua praga.

Tudo o que implorardes ao Deus-Sol provoca uma ação do Diabo.

Tudo o que criardes com o Deus-Sol dá poder efetivo ao Diabo.

Esse é o terrível Abraxas.

É a criatura mais potente, e nele a criatura tem medo de si mesma.

É a oposição manifesta da criatura ao pleroma e seu nada.

É o horror que o filho sente da mãe.

É o amor da mãe pelo filho.

É a alegria da Terra e a crueldade dos céus.

Diante de seu semblante o homem fica que nem pedra.

Diante dele não há perguntas nem respostas.

É a vida da criatura.

É a manifestação da individualidade.

É o amor do homem.

É a linguagem do homem.

É a aparição e a sombra do homem.

É realidade ilusória.

Então os mortos, por estarem consumados, gemeram e esbravejaram.


IV SERMÃO

Os mortos encheram de murmúrios o recinto e disseram:

Fala-nos dos deuses e dos diabos, maldito!

O Deus-Sol é o bem supremo; o Diabo, o oposto. Assim, tendes dois

deuses. Mas há muitas coisas supremas e boas e muitos males enormes.

Entre estes há dois deuses-diabos; um, o ARDENTE, o outro, o

CRESCENTE.

O ardente é EROS, que tem forma de chama. A chama dá luz porque se

consome.

O crescente é a ÁRVORE DA VIDA. Germina e ao crescer se acumula de

coisas vivas.

Eros se inflama e morre. Mas a árvore da vida cresce lenta e

constantemente, por tempo incomensurável.

O Bem e o Mal estão unidos na chama.

O Bem e o Mal estão unidos no crescimento da árvore. Em suas

divindades, a vida e o amor se opõem.

Inumerável como a hoste de estrelas é o número de deuses e diabos.

Cada estrela é um deus e cada espaço que ocupa, um diabo. Mas a

plenitude-vácuo do todo é o pleroma.

A manifestação do todo é Abraxas, a quem só o inefetivo se opõe.

Quatro é o número das medidas do mundo.

O primeiro é o começo, o Deus-Sol.

O segundo, Eros, une os extremos e se expande em luz.

O terceiro, a Árvore da Vida, ocupa o espaço com formas corpóreas.

O quarto é o Diabo, que abre tudo o que se encontra fechado; desfaz tudo

o que se constitui de natureza corpórea; é o destruidor em que tudo é

reduzido a nada.

Para mim, a quem foi dado o conhecimento da multiplicidade e

diversidade dos deuses, está bem. Mas ai de vós, que substituís esses

múltiplos incompatíveis por um deus único. Pois, assim fazendo, gerais o

tormento que se origina na falta de compreensão e mutilais a criatura cuja

natureza e meta é a individualidade. Como podereis ser fiéis à vossa própria

natureza se vos esforçais para transformar o múltiplo em uno? O que fizerdes

com os deuses será feito convosco. Ficais todos iguais e assim frustrais

vossa natureza.

A igualdade prevalecerá, não para Deus, mas apenas em benefício do

homem. Pois muitos são os deuses, ao passo que poucos os homens. Os

deuses são poderosos e podem arcar com a sua multiplicidade. Pois, como

as estrelas, permanecem solitários, separados por distâncias imensas. Mas

os homens são fracos e não podem arcar com sua natureza múltipla. Por isso

moram juntos e precisam de comunhão para poder suportar o isolamento. Por

amor à redenção, ensino-vos a verdade rejeitada, por cujo amor sofri

rejeição.

A multiplicidade dos deuses corresponde à multiplicidade do homem.

Inúmeros deuses aguardam a condição humana. Inúmeros foram homens.

O homem partilha da natureza dos deuses. Vem dos deuses e vai para deus.

Assim como de nada serve refletir sobre o pleroma, não adianta venerar

a multiplicidade dos deuses. E menos ainda venerar o primeiro deus, a

abundância efetiva e o summum bonum. Nada podemos acrescentar-lhe com

nossa oração, e dele nada podemos tirar; porque o vácuo efetivo tudo

absorve.

Os deuses brilhantes formam o mundo celeste, que é múltiplo, e

infinitamente disperso e crescente. O Deus-Sol é o senhor supremo deste

mundo.

Os deuses escuros formam o mundo terrestre. São simples, e

infinitamente decrescentes e minguantes. O Diabo é o mais abjeto senhor

desse mundo, o espírito-lunar, satélite terrestre, menor, mais frio e mais

morto que a Terra.

Não há diferença entre o poder dos deuses celestes e o dos terrestres. Os

celestes aumentam, os terrestres diminuem. Incomensurável é o movimento

de ambos.


V SERMÃO

Os mortos escarneceram e vociferaram: Ensina-nos, tolo, a respeito da

igreja e da santa comunhão.

O mundo dos deuses se torna manifesto na espiritualidade e na

sexualidade. Os celestes aparecem na espiritualidade, os terrestres na

sexualidade.

A espiritualidade concebe e acalenta. É feminina e por isso a chamamos

de MATER COELESTIS, a mãe celeste. A sexualidade gera e cria.

Masculina, a chamamos de PHALLOS, o pai terrestre.

A sexualidade do homem é mais da terra; a da mulher, mais espiritual.

A espiritualidade do homem é mais do céu, vai para o mais vasto.

A da mulher, mais da terra, vai para o mais ínfimo.

Mendaz e diabólica é a espiritualidade do homem que vai para o mais

ínfimo.

Mendaz e diabólica é a espiritualidade da mulher que vai para o mais

vasto.

Cada uma deve ir para seu próprio lugar.

O homem e a mulher, quando não dividem seus caminhos espirituais,

tornam-se diabos um para o outro, pois a natureza da criatura é a

individualidade.

A sexualidade do homem tem curso terreno; a da mulher, espiritual. O

homem e a mulher, quando não distinguem sua sexualidade, tornam-se diabos

um para o outro.

O homem conhecerá o menor, a mulher o maior.

O homem se distinguirá da espiritualidade e da sexualidade. Chamará à

espiritualidade Mãe, colocando-a entre o céu e a terra. E à sexualidade

Phallos, colocando-o entre si mesmo e a terra. Pois Mãe e Phallos são

demônios super-humanos que revelam o mundo dos deuses. São para nós

mais efetivos que os deuses, por terem maior afinidade com a nossa própria

natureza. Se não vos distinguirdes da sexualidade e da espiritualidade e não

as considerardes de uma natureza além e acima de vós, então vos entregareis

a elas como qualidades do pleroma. A espiritualidade e a sexualidade não

são qualidades vossas, nem coisas que possuís e contendes, mas que vos

possuem e contêm; pois são demônios poderosos, manifestações dos deuses

e, por conseguinte, coisas que vos ultrapassam, existentes em si mesmas.

Nenhum homem tem espiritualidade ou sexualidade próprias. Mas coloca-se

sob a lei da espiritualidade e da sexualidade.

Nenhum homem, pois, escapa desses demônios. Deveis considerá-los

como demônios que têm uma tarefa e um risco comuns, carga comum que a

vida vos legou. Assim a vida, para vós, também é tarefa e riscos comuns,

como são os deuses, e, acima de tudo, o terrível Abraxas.

O homem é fraco, portanto a comunhão é indispensável. Se vossa

comunhão não estiver sob o signo da Mãe, então está sob o signo de Phallos.

Nenhuma comunhão é sofrimento e doença. A comunhão em tudo é

desmembramento e dissolução.

A individualidade leva ao isolamento. O isolamento se opõe à comunhão.

Mas por causa da fraqueza do homem contra os deuses e os demônios e sua

lei invencível, a comunhão é necessária. Portanto deve haver tanta comunhão

quanto for preciso, não por causa do homem, mas por causa dos deuses. Os

deuses vos forçam à comunhão. Quanto mais vos forçarem, maior será a

necessidade de comunhão, maior o mal.

Na comunhão, que cada homem se submeta aos demais, para que seja

mantida; pois precisais dela.

No isolamento, um homem será superior aos demais, para que todos

possam vir a ele e evitar a escravidão.

Na comunhão haverá continência.

No isolamento, prodigalidade.

Comunhão é profundeza.

Isolamento é elevação.

A medida certa na comunhão purifica e preserva.

No isolamento, purifica e aumenta.

A comunhão nos dá calor, o isolamento luz.


VI SERMÃO

O demônio da sexualidade se aproxima de nossa alma feito serpente.

Semi-humano, surge como pensamento-desejo.

O da espiritualidade mergulha sobre nossa alma como pássaro branco.

Semi-humano, surge como desejo-pensamento.

A serpente é uma alma terrena, semidemoníaca, um espírito, e semelhante

ao espírito dos mortos. Assim, como estes, também pulula entre as coisas da

Terra, fazendo-nos temê-las ou espicaçando-nos com desejos imoderados. A

serpente tem natureza semelhante à da mulher. Sempre procura a companhia

dos mortos retidos pelo feitiço da Terra, os que não encontraram o caminho

mais além, que leva ao isolamento. A serpente é meretriz. Entrega-se a

orgias com o Diabo e com os maus espíritos; tirana e algoz maldosa, sempre

seduz os mais vis. O pássaro branco é uma alma semiceleste do homem.

Dialoga com a Mãe, descendo de quando em quando. O pássaro tem natureza

semelhante à do homem, e é pensamento efetivo. Casto e solitário, é

mensageiro da Mãe. Sobrevoa a Terra a grande altitude. Infunde isolamento.

Dá ciência dos distantes que já se foram e estão consumados. Leva nossa

palavra à Mãe nas alturas. Ela intercede, avisa, mas não dispõe de poder

contra os deuses. É receptáculo do Sol. A serpente vai para baixo e, com sua

astúcia, estropia o demônio fálico ou então incita-o a prosseguir. Produz os

pensamentos demasiado ardilosos do demônio terrestre, aqueles

pensamentos que se insinuam com desejo por cada furo e fenda em todas as

coisas. A serpente, sem dúvida, não quer, mas tem que ser útil a nós. Foge do

nosso alcance, mostrando-nos assim o caminho, que com nossa inteligência

humana não poderíamos encontrar.

Com olhar desdenhoso, disseram os mortos: Para de falar em deuses,

demônios e almas. No fundo, há muito já sabíamos disso.


VII SERMÃO

Mas quando sobreveio a noite, os mortos avançaram de novo, com

lamentável aspecto, e disseram: Tem mais uma coisa que esquecemos de

mencionar. Ensina-nos sobre o homem.

O homem é pórtico, pelo qual, vindos do mundo exterior de deuses,

demônios e almas, passais para o mundo interior; saindo do mais vasto para

penetrar no mais ínfimo. Pequeno e efêmero é o homem. Já se encontra atrás

de vós e mais uma vez vos achais no espaço sem fim, no menor ou mais

íntimo infinito. A incalculável distância paira uma estrela solitária no zênite.

Esse é o único deus desse homem. Esse é o seu mundo, seu pleroma, sua

divindade.

Nesse mundo é homem Abraxas, o criador e destruidor de seu próprio

mundo.

Essa estrela é o deus e o destino do homem.

Esse o único deus que o guia. Nele vai o homem repousar. Rumo a ele

segue a longa jornada da alma depois da morte. Nele brilha como luz tudo o

que homem traz de volta do mundo mais vasto. A esse único deus o homem

erguerá suas preces.

A prece intensifica a luz da estrela. Lança uma ponte sobre a morte.

Prepara a vida para o mundo mais ínfimo e aplaca os desejos irrealizáveis

do mais vasto.

Quando o mais vasto esfria, a Estrela arde.

Entre o homem e o seu deus único nada se interpõe, desde que se possa

desviar os olhos do espetáculo flamejante de Abraxas.

O homem aqui, deus lá.

A fraqueza e o nada aqui, lá o poder eternamente criador.

Aqui, nada além de trevas e gélida umidade.

Lá completamente sol.

Então os mortos se calaram e subiram como fumaça de fogueira de pastor

que passou a noite zelando pelo rebanho.


ANAGRAMA:

NAHTRIHECCUNDE

GAHINNEVERAHTUNIN

ZEHGESSURKLACH

ZUNNUS.


Tradução de Milton Persson


Extraído do livro Memórias, sonhos, reflexões. Carl G.Jung

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